terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Raio de Sol

Estávamos frente a frente, sentados, e eu a observava. O modo como me contava sua infância e suas expressões faciais que mudavam entre algo sério e um sorriso que esconde o nervosismo me prendiam. Não conseguia deixar de prestar atenção nos seus olhos, que exprimiam um sentimento forte, de uma mulher batalhadora, embora ainda em sua plena juventude. Olhos vivos que me hipnotizavam. Um olhar inocente que me trazia tranqüilidade, ao mesmo tempo.

As palavras soavam firme devido ao detalhes que, no começo, não queriam se apresentar; da mesma forma em que se negou educadamente a não tocar no assunto, ou melhor, a não expor sua vida a um desconhecido que, provavelmente, lhe passava confiança. A insegurança feminina. Compreensível. Mas não teve jeito. Iniciou com certa timidez e logo já apresentava tudo claramente, explicando minuciosamente o que passou com quem deveria dar-lhe atenção, carinho e estímulo, mas, ao invés disso, surrava-lhe toda vez que reclamava, e com razão, das atitudes reprováveis de sua genitora para com ela e os demais petizes. E enquanto sua mente remoía o passado sofrido e injusto, fazia com que eu me sentisse um nada. Um qualquer, um mimado. Não quero fazer comparações, mas, já procedendo dessa maneira, posso dizer que tive uma vida tranquilíssima perto do que ela passou.

Enquanto falava, sentia emergir sentimentos que reconheci aos poucos, passando por indignação, raiva, compaixão. Suas palavras cortavam o que eu chamo de revolta. Me envolvi completamente, tentando imaginar as cenas em que aquele lindo rosto chorava, se assustava e até não mostrava sentimento algum, como se tudo não passasse de um pesadelo. Ao me informar sobre os abortos, dos quais presenciou apenas um, o que já é emoção demais para qualquer criança, senti repulsa. O fato do aborto na tentativa de “reparar” o resultado que considerava negativo era repulsivo. O que uma mãe pode se tornar e o que é capaz de fazer. Culpa dos prazeres carnais e falta de caráter. Suei frio. Não demonstrei, mesmo desabando por dentro. Um homem ou um rato? Ah, se tivessem me perguntado isso naquele momento... 

E ela contava, descrevia, enquanto seu olhar procurava algo onde poderia manter-se estacionado por alguns momentos, com o intuito de distrair-se dos meus olhos, que a fitavam quase que sem piscar. Eu buscava esse encontro, pois queria antecipar seus pensamentos e ver sua reação. Ora funcionava, ora fazia-se inútil e constrangedor.  Seu comportamento mudava, mas parecia imutável, apático, na maior parte do tempo. A personalidade forte. Foi isso que mexeu comigo.

Palavra por palavra, enquanto seus lábios me diziam algo mais. Lábios suaves, bem desenhados, do tipo que atraem e pedem por um beijo, de uma forma completamente involuntária. Eram carnudos, mas não excessivos. Menores do que a da Jolie, só que bem mais bonitos. Imaginado tudo isso e repelindo o sonho no mesmo instante. A realidade é bem mais cruel, pois ela nunca me pertenceria. Acontece, acontece.

Entre um fato e outro, tristeza e desilusão, a história complexa tornava-se clara. Não que tenha melhorado. Não, isso não. Questionei algumas coisas e perguntei o que sentia depois de ter passado por toda essa dificuldade que poderia ter sido evitada. — Ódio. Sinto ódio, mas não queria senti-lo. Ao dizer isso, notei que seus olhos, ainda com a mesma vivacidade de outrora, começaram a brilhar. Eu conhecia aquele brilho. Acontece quando estamos prestes a liberar as águas que nos libertam do sentimento sufocante e que também causa aquele nó na garganta. Mas conseguiu se conter. Ou talvez tenha sido somente impressão minha.

Ao final de tudo, como a calmaria que vem depois de uma tempestade, mas que ainda conserva o desastre no local, disse que não se prende a isso. Pretende mudar. Quer viver sua vida com um dos seus maiores motivos de alegria, se não o maior; sua filha. É pelo futuro dela que batalha. — Às vezes, olho para o teto e ao redor da minha casa, e me pergunto se toda essa porra não vai mudar. Mas eu não esquento com isso. Tento não me estressar. Continuo a viver. Se estou sorrindo hoje, é porque chorei muito no passado. Sou alegre, esse é o meu jeito.

Essas palavras me fizeram perceber que ainda é possível acreditar nas pessoas. Me identifiquei. Ela busca algo e tem esperança no futuro. E, confesso: senti vontade de ajudá-la a mudar, mesmo sendo esse “zé ninguém” sem rumo.  A sensação foi ótima e tudo ficou guardado no meu pensamento, até o presente momento. Tomei a liberdade de apelidá-la carinhosamente de “raio de sol”, devido as suas madeixas e, principalmente, como um símbolo: aquele raio de sol que passa por entre uma nuvem e outra, ou que se apresenta pela fresta da janela ou no buraco do telhado, durante o tempo nublado que não se decide, trazendo esperança de um dia ensolarado.

2 comentários:

  1. Quanta emoção encarnada nesses parágrafos.

    Hey, uma dúvida: é só um conto ou é fato?

    Abraços

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  2. Nelly, minha linda! Dessa vez é um fato, uma história verdadeira. Eu tinha que escrever sobre isso. Abraços.

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